sábado, 5 de setembro de 2015

A invenção do grito

Pedro Américo fez o quadro para decorar uma sala do Museu do Ipiranga (ou Museu Paulista)
A imagem de d. Pedro I desembainhando a espada no alto do Ipiranga é uma das representações mais populares da história do Brasil. Há muitas décadas ela figura em livros didáticos e ilustra páginas de revistas e jornais por ocasião das comemorações da Independência. Diante dela temos a impressão de sermos testemunhas do evento histórico, aceito naturalmente como o “marco zero” da fundação da nação. No entanto, essa imagem é fruto da imaginação de um artista que nem mesmo tinha nascido no momento em que o episódio ocorreu.
Historiadores têm demonstrado que foram necessárias muitas décadas para que o hoje famoso episódio do “Grito do Ipiranga” adquirisse o status que ele possui no contexto das narrativas sobre a Independência. Como demonstra a pesquisadora Cecília Helena Salles de Oliveira em seu estudo sobre o tema, a data de 7 de setembro não foi considerada, de início, particularmente relevante como marco simbólico da formação da nação, nem pela imprensa, nem pelo próprio d. Pedro.
Em carta dirigida aos paulistas, no dia seguinte ao episódio ocorrido às margens do Ipiranga, o príncipe fala da necessidade urgente de retornar ao Rio de Janeiro em função das notícias recebidas de Portugal. Na longa carta, não há qualquer referência ao “grito”. A Independência do Brasil não estava inteiramente consumada. Dependia também de negociações políticas. Também em carta dirigida ao seu pai a 22 de setembro, d. Pedro não faz referência ao evento.
Da mesma forma, os jornais de época, que ensaiaram as primeiras narrativas sobre a Independência do Brasil, não traziam qualquer menção à data de 7 de setembro. O Correio Braziliense, por exemplo, publicou uma notícia declarando a data de 1º de agosto como marco da emancipação. Era a data em que o príncipe enviou o Manifesto às Províncias do Brasil, no qual se desobrigava de obedecer às ordens das Cortes de Lisboa. O redator do jornal Regulador Brasileiro, por sua vez, apontaria a data de 12 de outubro, na qual ocorreu a aclamação de d. Pedro I como Imperador do Brasil, como o verdadeiro marco da criação da jovem nação. Outras datas, como o 9 de janeiro, dia do “Fico”, em que d. Pedro I recusou-se a embarcar para Portugal desobedecendo as ordens dadas pelas Cortes de Lisboa, ou a de 1o de dezembro, data da coroação, foram mencionadas, mas nunca o 7 de setembro.
A ênfase da composição, no entanto, não está na ação heroica de d. Pedro. Tanto o príncipe, quanto diversas figuras que o acompanham, dirigem seus olhares para o céu, de onde desce um raio de luz que ilumina a cena. Nesta representação, não está em jogo a habilidade política de d. Pedro, tampouco seu caráter ou capacidade de liderança. A imagem vincula o evento à providência divina, diminuindo com isso o tom heroico e voluntarioso da figura do príncipe e reafirmando a legitimidade dos herdeiros da casa de Bragança ao trono do futuro império tropical. Neste aspecto, a obra tem mais em comum com as imagens da Aclamação e da Coroação de Debret, do que com Independência ou Morte! de Pedro Américo. Para que a ação de d. Pedro se tornasse o tema central da obra de Pedro Américo foram necessárias mais de quatro décadas de transformações políticas e culturais.
Adão Oliveira

Fonte: UOL

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